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Análise de "Poemas para o coveiro", de Fernando Sales, por Úmero Card'Osso


Leitura de Poemas para o Coveiro


“Poemas para o Coveiro” é um livro de poesia que versa sobre a morte sem conter elegias.
A obra não contém elegias porque seu conteúdo afirmativo não dá margem a lamentações e dúvidas.
Exceptuam-se aí o soneto que narra o suicídio de um camponês, e também a elegia dedicada à tia Selma, que na minha opinião figura como um dos melhores poemas.
Ademais, “Poemas para o Coveiro” é um “livro”, não é uma antologia de melhores poemas do autor. Assim, suas partes se relacionam com um fio condutor, uma vez que, em sendo livro, há nele um planejamento.
Para entender melhor esta coesão racional e estrutural, vejamos o desenvolvimento das partes do livro.
Logo à primeira página, surgem os dois medos que Fernando anuncia como sendo os objetos da obra: medo da vida / medo da morte.
Na 1ª parte do livro, manifestam-se questões subjacentes ao tema da finitude humana.
A vida é vista como escravidão, por conta da escravidão cotidiana do trabalho (Pág. 23 & 28). O verso “Sepultos sob a terra ou sob o capital” (Pág. 20) identifica os mortos do cemitério com os mortos-vivos do Trabalho.
Em face da rotina deletéria do trabalho, verifica-se um esgotamento em “Fiapos de Resistência” (Pág. 23) e em “Morte em vida” (Pág. 30).
O tema do esgotamento é muito comum na literatura, servindo de mote ao fio condutor, cujo sonho de imortalidade enunciado logo no início verificar-se-á como importante contrapartida encontrada pelo poeta em seu discurso libertador.
A necessidade de silêncio no poema holístico “Sou o outro” coaduna-se com o sonho de imortalidade. O tema também se perfilará ao fio condutor, tecendo uma espécie de ideal zen na axiologia criada pelo poeta.
Na 2ª parte do livro, a tônica do lirismo (anunciado no título) é justamente o revigoramento da alma embotada por sua “doença” (título da 1ª parte), niilismo, desânimo e esgotamento.
Entretanto, a morte ainda é vista aí como uma espécie de inexorabilidade do tempo (Pág. 39).
Na 3ª parte, surgem novos temas a negociar com o revigoramento afirmativo estabelecido na dialética travada até aqui. O poeta utiliza as categorias de amor e sexo para resolver sua dialética. Ambos são consubstanciados na síntese do tempo, vertendo a imortalidade em infinito e fazendo com que este infinito seja o momento (Pág. 59).
No poema “O beijo entre o céu e a terra”, mais ao fim do livro, verifica-se a recorrência da eternidade do momento mínimo.
Na esteira desta solução, a mulher é vista como subtração do abismo no poema “Reconquistas” (Pág. 63). Temas como abismo (Pág. 51 e 57) e labirinto (Pág. 50) se sucedem na pulsão psicanalítica de morte que ainda há na nervura destes textos que se atrelam ao fio condutor do livro sob a égide do hedonismo (vide o título da parte: “Hedônicos”).
De maneira surpreendente para um poeta destituído de clichês espiritualistas, o espírito também aparece na síntese aludida. Assim, a imortalidade também pode ser espiritual (Pág. 58 e 64), além de ser, à guisa de Nietzsche, vital e sincrônica, porque o momento é infinito.
Para amalgamar ainda mais este vertedouro, que conclui pelo aludido revigoramento afirmativo, Fernando realça a sexualidade do espírito: “Nós amamos o desejo / e não a materialidade” (Pág. 61).
Continuando a análise do fio condutor, na 4ª parte, a metalinguagem é utilizada, de forma surrealista, para tematizar a poesia em sincretismo com elementos da natureza. Depois, ao tratar da chuva na 5ª parte, o poeta prescinde da metalinguagem prometida para lançar mão de alguns aforismos. Cumpre ressaltar que é genial o aforisma que trata da confusão que fazem com os conceitos de liberdade e solidão.
Parênteses à parte, o poeta segue. Sua dialética está resolvida mas precisa ser retrabalhada. É preciso apresentar novas negatividades para realinhar seu pensamento afirmador. O tema da ruína aparece nos poemas homônimos intitulados “Amor”. Surge pela primeira vez no livro, pasmem, a dificuldade aceitar a morte. Isto ocorre no emocionante poema “Sobre a morte” (Pág. 85).
Na esteira da explanação capital acerca da finitude humana, a dicotomia “medo da vida / medo da morte” é recuperada no signo do olho, o qual se nos apresenta com seus índices de delírio e de automartírio, uma vez que, síntese cabal, o poeta nos faz ver que o olho é a salvação paradoxal, pois pode ver as cores mas terá também de ver as dores (Pág. 87).
Por fim, para terminar, à parte 7ª há recorrência da tese central de todo o fio condutor: a epifania de um momento em que o vento faz supor a eternidade (Pág. 105).
E talvez os melhores poemas: um em memória de tia Selma, e outro em homenagem ao irmãozinho Bruno.
Por último, o poema “Despedida” encerra o livro com sua transvaloração anticlichê. O jogo de calcular o mérito da vida e saber se valeu a pena a degenerescência transpoetizada termina por dizer, à guisa do melhor conteudismo, que o avanço do tempo não coaduna-se com o ser-menos, mas sim, com o ser-mais.

Por: Úmero Card'Osso

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