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Atlântida Karen Winehouse, sua admiradora de homens desnutridos, já que
resolvi adentrar no assunto, reservei para você a apresentação da seção
esportenativa. Vendiam-se ali roupas que tornavam qualquer pessoa atleta
pró-fissional e pré-fissional; que tornavam a pessoa atleta-de-fim-de-semana,
jogador-de-fim-de-ano ou esportista-de-fim-da-vida; havia roupas-para-atletas-religiosos-não-mostrarem-de-mais,
e até mesmo roupas-para-ser-esportista-em-cerimônias-fúnebres.
Se comecei, agora vamos.
Úmero, seu detestador-mor da mídia, há agora à sua vista a
Seção-dos-Milagrinhos-e-Milagretes, em que os lisocultuadores anônimos buscam
roupas que os tornem famosos-por-um-cedê-de-sucesso e em que os famosos
procuram vestes para nunca-deixarem-de-ser. Há ainda a Seção “As Mentiras que a
Mídia Conta”, adaptada da tevê e reservada a inventar calúnias a fim de que o
povo de cabelo sub-imundo tenha assunto para falar e orgulho para se motivar.
Mais adiante, Card’Osso, falarei detalhadamente desse abestalhamento.
Lucca, tu que és o mais irônico dentre nós, nesse feirão há ainda a
roupa-psicologizante, que serve para as pessoas que querem parecer pensadoras,
mas não são capazes de tanto, forjarem um ar intelectual. E o importante disso
tudo, como você já concluiu, é vender ilusões...
(Gostaria
ainda, amigos, de deixar um comentário extra: entre todas as inutilidades ou
futilidades possíveis de serem inventadas, a única que ainda não existe é alguma
espécie de proteção, loção ou chapéu para os cabelos chapinhados contra a chuva
e toda espécie de água... Torna-se, portanto, importante notar que, se chovia,
pois às vezes chovia – o que era muita maldade do céu –, as os cabelos alisados
se desfaziam.
Ora, moças atlantizadas
para quem agora olho e que fazem essas belíssimas faces, sabemos que sem água
expande-se o mau-odor. Nesse microcosmo desprezador-de-narinas chamado Reino
Sub-Imundo, as pessoas não lavavam os cabelos todos os dias e até mesmo seus
banhos eram minúsculos, inenxergáveis, semiexistentes. Não se importavam com
isso – contanto que estivessem bonitos diante da sociedade, punham-se fétidos
mesmo, muito: com convicção. E quando chovia – pois o céu por vezes tinha essa
estranha ousadia, esse desafio à ordem – era o caos, o desespero. Havia tentativas
mais-escandalosas-do-que-histérica-em-seus-dias de fugir da chuva. E, por
conseqüência, os cabelos cresciam e se enrolavam quando tão cruel fenômeno
ocorria... Foi desta forma, queridas, que surgiram os primeiros Movimentos
Anti-Chuva do Reino. Aquele povo artificial praguejava contra a natureza,
humilhando-a profundamente e, quando a chuva parava, voltava-se para o céu, com
cartazes escritos assim: “Abaixo o céu!”, “Fora o céu!” e “Por que não vai
chover pra lá?”).
Mas como ia dizendo, senhor Lucca Moretti, havia, finalmente, várias
sessões para a multiprodução capilar: das musas, das consumidoidas e até mesmo das
feias-sem-espelho-mas-metidas-a-fadas... Mas nada! nada! nada! se
comparava ao principal produto a ser comercializado naqueles concursos.
E não pense, João Martins, seu
engolidor de beldades, que eram as modelos. Eram disparadamente as chapinhas,
pois o Concurso-de-Beleza-Lisense era o paraíso artificial das alisadoras de
cabelo. Grandes, pequenas, boas, malvadas, invocadas, simplesinhas, super-assadeiras,
arrebentadoras-de-fios, capazes desde pequenas-tostadinhas, passando por frituras-excêntricas,
até chegar aos massacres-capilares-em-massa. Havia inclusive, glorioso atlante,
uma classificação estritamente importante: as chapas alisadoras de rico, as chapinhas
de quem não pode e as de remediado – que são as que parecem não poder mas podem;
ou vice-versa, que eu também não sei todos os detalhes de tudo...
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Enfim, havia pra todos os gostos, pra todos os tipos. Uma festa! Aquilo
era uma Festa-dos-Cabeludos! E o patrocínio era das Lojas Multi-Titica, o maior
centro-de-inutilidades sub-imundas.
Chapinha
de quem não pode
Chapinha
de remediado (consegue os mesmos efeitos sendo imensamente mais barata)
Chapa
alisadora de rico
Para que você possa fazer idéia das proporções de tal evento, meu
amigalhão Úmero Card’Osso, os desfiles a que me refiro aconteciam em espaços
que poderiam ser comparados aos nossos campos de sofiabol, quando lotados. E
ficavam milhares de minipessoas de microvidas do portão para fora, por não
conseguirem ou não poderem entrar. Mas telões eram providenciados, não pelo
presidente-louco – que naquele momento coletava minhocas gordas para alimentar
pássaros graúdos –, mas por Greval, cumprindo desagradado seu dever de
etnodominador. Descontente, sentindo-se injustiçado e injustiçador, ele
investia na organização de um megaevento com o qual antipatizava terrivelmente.
Seu dever, aliás, estava nisso: ser o continuador de uma ideologia absurda. E
foi com cara-de-purgatório que mandou espalhar pelos quatro cantos não-líricos
do estádio esta mensagem:
A chapa
que você compra é a nossa alegria!
Viva
a Propaganda da Desnecessidade!
|
As modelos então desfilam – não por ser importante, mas por uma
formalidade burrocrática. Algumas dão passos de garça-desarticulada com o pescoço caindo para trás, resultado
evidente dos excessivos puxões de cabelos, para alisá-los. Outras, em tudo
muito semelhantes às seriemas, mal conseguem andar, por serem demasiado
magricelas nas pernas – maníaco modelo de beleza por lá adotado. Outras ainda
desfilam com a boca aberta, porque a chapinha queimou-lhes a nuca e o machucado
muito arde, o que faz daquele cenário mais uma desinfeliz hora alisada.
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Algumas modelos vão às passarelas com a cara amuada, pois querem do
fundo de seu couro cabeludo a cachocabeleira-expansiva. Mas não devem, não
podem. Quanto a isso, Joque Lacão, o já referido faxineiro de Greval e
despertador de consciências nas horas vagas, nos diz: “Os neuróticos não
desobedecem à lei”.
Caipira, meu parceiro de vida e de copo, que bom tê-lo conosco para
mais uma rodada de vinho, para todas as rodadas de alegria! O garçom já lhe
trará outra dose e as meninas juram que dançarão para nós após todos
desmaiarmos. Acomode-se nas nossas poltronas-da-crítica-de-bar e veja: as
modelos capilantras são o símbolo do que há de supraexcelente no Reino
Sub-Imundo. Só os chapinhadores mais extravestidos podem chapá-las (entre eles,
com maior destaque estava frufruisticamente Esníguio). E, como não poderia
deixar de ser, vence a que usasse a chapinha mais moderna, o melhor
neolançamento, a nova revolução no mercado das chapinhas – algumas delas vinham
com máquinas fotográficas digitais embutidas, outras com tocadores de música-sem-música,
outras ainda com disque-namorado-em-domicílio! O público, tolo, nem percebia
que quem disputava não eram as moças, mas as marcas de alisadoras!
Seque-e-Rele era a atual misse. Cabia milimetricamente em todas as
medidas: capilares. As outras medidas não interessavam: muito. Eram os cabelos,
a chapa, a fritura, o fedor bem-ou-mal-disfarçado (ou ainda, a nova marca ou o
novo modelo que deveriam comprar) o que realmente interessava. Seque-e-Rele era
um fantoche, uma joana-boba, uma maria-ninguém, mas todos a viam como um ídolo.
Ela, linda e abrilhantadora de olhos, desfilava cheia-de-si e vazia-do-todo.
Sim, Lucca, crítico de absurdos, havia alguns pré-requisitos para se
disputar o cargo, e todas tinham de atendê-los: não fumar, não beber, não
injetar e ser virgem e pura, semissanta de se pôr em altar para se beijar os
pés. Além disso, tendo iniciado o concurso, vencidos os pré-requisitos e pós-esquisitos,
interessava ainda e mais a futilidade. Para a atual misse, batom, bloche,
pó-de-arroz, vestidos, sapatos, tamancos e perfumes eram os únicos assuntos
interessantes no mundo. Era uma mulher, portanto, perfeita, segundo os padrões
reinodistânticos. Vivia ela, infelizmente, uma atmosfera da exterioridade absoluta.
Digam-me todos, atlântidos, digam! Vocês, como eu, não torcem para que
ela se transforme, para que ela cresça, para que ela veja além da sola-do-próprio-pé?!
Não adianta...
Em meio a tudo aquilo, Osnígol foi escolhido o chapinhador-desta-e-de-todas-as-vezes:
podendo, em termos de importância, ser comparado a nosso Agarram O’Bell, em
talento inventivo. Mas, à surdina de seu quarto, à noite, sozinho,
lamentando-se, não era uma macropessoa como supunham, e ninguém sequer o conhecia
ou reconhecia. Ali suas dores gástricas fundadas no nervosismo, seus problemas-medos-receios
fervilhavam e suas dúvidas eram um automartírio, uma automutilação terrível.
Ovosníguio não era desprovido de inteligência. Ovovosníguio possuía uma visão
ampla, uma abertura mental, e era esse o seu inferno. Porque se não visse, não
pressentiria, não refletiria. Mas via.
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Ora, se não era ali ao lado da passarela – passadas as suas dúvidas
momentâneas quanto à importância de seu trabalho – que se sentia bem no mundo,
à vontade e com vontade, de uma alegria comparada a de muitos protagonistas de
filmes infantis, aos quais muito ignorantemente nunca assisti.
O comportamento do chapinhista nos decepciona, atlântidos... Constrange-nos.
Por alguns momentos, devido a nossa Gandhi-bondade também momentânea, torcemos
por ele, por sua redenção da obtusidade lisense. E ele nos decepcionou. Aplaude
agora feliz e sorridente uma rapazola qualquer: alisada, plastificada, uma
tábua (s)em pessoa.
A seu lado, discreta, porém ardente, Tarja bate exatamente três palmas
à vencedora. Obrigação essencial de quem está e não está no sistema. Angústia
de quem vê possibilidades de mudança em seu chefe, que não muda. Articulação de
quem pensa em algo maior. Como, Bea? Sim, também acredito que Tarja ainda muito
nos promete. Veremos. Veremos.
O concurso, como vocês puderam ver, elevados aristoamigos atlântidos, é
semi-interessante, ou mesmo um-quarto-interessante... E vocês vão bem se
lembrar, não se compara ao concurso de nossa Sociedade Atlântida! Este sim é
universo-abrangente, arrebatador, furioso e hercúleo. Aqui são outras as
mulheres que desfilam, porque possuem a verdadeira potência: são as Aceitas por
Baco!
Antes de tudo, no nosso Misse-Essencial há dois pré-requisitos: por um
lado, possuir formação crítico-artística, provinda dos cursos de Amizade
Transparente ou de meios autodidatas; por outro, ter boa percepção para
sentidos ocultos do que não é dito letra-por-letra, mas que exige uma
compreensão do que está no ar, do que só uma sensibilidade avançada pode
permitir.
Sem isso, não podemos respeitar uma misse, afinal ela é: modelo,
protótipo, arquétipo, um ideal a ser alcançado. Porém tais pré-requisitos são para
poder disputar o concurso, porque para ganhá-lo jamais desprezaríamos: a beleza, a
força libidinal, o vigor atlético, torneamento muscular na medida, a provocação
estrábica: nossas modelos atiçam o público, atentam-no, fazem dele viajantes do
odor di femina, e todos vão embora felizes, e sem comprar nada. Nossos concursos não
são comerciais, são exibicionais e potenciais. O desfilar é para aquelas que
podem se mostrar e têm o que mostrar. Quem não pode, calunia, difama, tenta
rebaixar aquilo que não alcança. Quem gosta de ver, assiste. Quem vê, nunca
mais esquece, porque há exímia qualidade na pré-seleção. Os platônicos aqui
encontram o prazer da observação sedenta; Tântalos endoideceriam!
Keira foi eleita Misse-Essencial no último concurso. Ela tem a naturalidade
por base, sendo dona de cacheados elegantes, de enrolados fenomenais: tem
postura, tem força – ainda que com delicadeza, tem presença. Seus cabelos já
tiveram várias cores e formatos, já fez e desfez de tatuagens, e isso importa e
não. Porque nós a amamos e admiramos, Keira, do que jeito que for e quiser ser,
desde que você mesma queira e escolha. Quando desfila, os homens se contorcem,
como cachorros mal-adestrados; é fato ainda, Karen, que ela agrada excepcionalmente
ao público feminino desprovido de recalques. Ora, é certeza nossa que não
precisamos inventar pretextos e desculpas para exibirmos lindas e pensantes mulheres.
Elas são orgulho e modelo da espécie, para todos nós.
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Mais ainda, nossa Misse-Essencial é uma mulher livre. Quando sente
algum desejo ou vontade, convida quem quer para fazer o que bem quiser, sem
necessidade de padrão comportamental baseado em pseudopudores e etiquetas
absurdas. Keira é livre, ela se joga na felicidade, lança-se no universo.
Vejo como sorriem graciosas, Bea e Karen. De fato as Graças estão
reencarnadas em vocês duas. É realmente bom lembrar que na nossa sociedade as
mulheres não precisam se envergonhar de sentirem o que sentem e de exporem a gana
de suas possibilidades e de seus desejos. Vocês podem, se quiserem, agir sem
medo do puritanismo invejoso que ama a forjada e chatíssima “virtude”, da
maneira como as moralistas-do-passado-manchado a concebem. Ah, mulheres, vocês lá
realmente destacam-se em sua segurança. Sabem que não está tudo terminado
quando dão seu último retoque na maquiagem, têm consciência de que não é o auge
serem observadas por todos desde que nunca abram a boca para falar. Reconhecem
bem, inclusive, que quando dois se trancam entre quatro paredes não é o fim de
seu papel na história, mas o ponto de partida de sua escalada.
Keira preparando-se
para concorrer
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Na próxima semana, não perca o início da volta de Greval ao lar, como Ulisses que, depois da saga, retornou. Tudo isso e muito mais no:
CAPÍTULO
III – “DO AMOR E OUTROS DEMÔNIOS DA LUZ”; DA INVEJA E OUTROS ANJOS DA ESCURIDÃO
Parte I – Encontro entre tese e antítese,
entre a bonita e o feio; um neofuturo vislumbrando-se
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