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CAPÍTULO
III – “DO AMOR E OUTROS DEMÔNIOS DA LUZ”; DA INVEJA E OUTROS ANJOS DA ESCURIDÃO
Parte I – Encontro entre tese e antítese,
entre a bonita e o feio; um neofuturo vislumbrando-se
Depois da
longa esbórnia outrora referida, como a que Ulisses um dia fizera, tomando por
fim dois gins com um dos últimos garçons subviventes de toda a cidade de Distúrbico
– era hábito no Reino Sub-Imundo os garçons falecerem após os espancamentos físicos
e morais de seus patrões –, Greval seguiu sério em sua mobilete rosnante para o encontro de Lúcsia, a Tétis do Reino
Sub-Imundo, sua esposa e nossa ninfa. Sobre ela, é preciso que os veroatlântidos
saibam: não ocupa um aristocargo da burrocracia cabelouca, não tem a exposição
midiática de uma modelo chapinhada, não está deitada sobre a emplumada-cama-do-estatos, mas sabe muito bem como ser a
mola-mestra-de-um-derrotado. Porque o que sobra de um Greval pós-carnavalesco é
um trapo-usando-etiqueta-de-loja-chique (fenômeno esse, Lucas Salles, talvez posteriormente
explicado, mas nunca entendido).
É preciso
café! Nenhum encontro no Reino Sub-Imundo se dá sem que se tome café. Essa
obscura bebida para eles, João Martins, é tão necessária quanto a vodca para
nós! Mas enquanto esta é fonte de vida e alegria para nós atlântidos, o café é
só base para a forjada-cortesia reinodistântica. Sim, amigos, especialmente em Distúrbico,
as pessoas servem café porque são obrigadas, não porque gostam umas das outras.
Não era o caso de Lúcsia.
É interessante
notar que no Reino Sub-Imundo, louva-a-demo Úmero Card’Osso, alguém teve a
sutileza de perceber que após a festa é necessário o descanso. Por isso,
criaram o presente feriado na precisa data em que nos encontramos: a Quarta-Encinzas,
o consílio entre Baco e Apolo, a passagem da alegria para a sensatez – um dia
de folga. Era o momento específico para as pessoas se arrependerem por terem
sido realmente felizes e livres, já
que a real-felicidade, no reino, é um
tabu. No dia a noite, cabe-lhes somente, é preciso que se diga, o fenômeno do sorrriso-à-meia-boca – apresentado
socialmente como obrigação, não como sentimento.
Bem notado, sagaz
Beazinha, já lhe digo o motivo da briga da noite anterior. É que Lúcsia não
queria Greval na etnodominância. Não porque não fosse ético, mas porque não ia
a caminho da superação do meramente humano.
Ele queria ser a luz em meio à podridão e, com isso, não percebia que somente
Lúcsia o iluminava. Estar entre os burrocratas era respirar-lhes o mesmo ar,
misturar-se aos dejetos. Poderia imundar-se. Poderia tornar-se um adepto da cultura-que-amassa.
Poderia ainda, e o pior, ser simplesmente político, o que para a sociedade
cabelólatra significava: cuidar só de seus próprios interesses. Ela tinha
ambições diferentes para nosso herói, ambições que remetiam a seu eu interior,
à sua pessoa propriamente dita.
Greval foi
para a noite, perdeu-se entre a balconista feia, esbarrou em garçonetes
rabugentas-e-sem-marido, iludiu-se com a promessa-de-sorrisos-instantâneos mas
que no fundo eram alterdestrutivos e acabou voltando para o Olimpo, para sua
Ilha dos Amores.
- Sua revolta
contra a situação lisense não desfaz os fatos, Greval. Corromper o sistema
sendo um de seus mandantes é um autoparadoxo repugnante do qual você tem de
fugir.
- Mas, Lúcsia –
e disse isso se ajoelhando em postura cavalheiresca –, adentrar a elite é
talvez a única maneira efetiva de ajudar nosso reino, mudando-o em seu núcleo.
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- A melhor
maneira de ajudar não é atolar-se na pocilga. O melhor a ser feito é estar onde
os injustiçados estão para saber o que cada um realmente sente, do que cada um
realmente precisa – e depois de uma pausa necessária: – Você precisa de um novo
emprego, de um novo rumo.
- Mas...
mas... Não sei como e não sei quando. Lúcsia, minha Helena sem Troia, só sei
que assim será – e ao dizer isso sorria.
Ouvindo as
palavras do marido, Lúcsia pôs a mesa, pôs a cama, pôs sua pessoa. Era dele, para
ele e com ele. Ela falou o que nenhum homem pode dizer a si mesmo, fez os
carinhos espontâneos que não sabemos definir com palavras, entregou-se da
maneira exata que poderia até permitir que ele corresse mundo e conhecesse os
vermódromos, mas que também o fazia necessariamente voltar, bioadorador que é,
a quem o compreende e o satisfaz. Amor.
Parte II – a amizade para um atlântido é a fonte
para uma boa vida; um chou de fenomenais proporções
Ah, bélicos amigos, como é bom nos afogarmos na alcoolatria
e no tabacocentrismo! Quase não consigo mais contar-lhes sobre o reino, tamanha
é a tremedeira que me escorre dos dedos. Como é boa a presença que me
proporcionam! Vocês são meus amigos, vocês são meus amigos...
Lembram-se de nossa visita às fronteiras do Reino
Sub-Imundo? Lembram-se de nossa ousadia ao beirarmos às raias da sociedade necroveneradora,
ao tangenciarmos a lisocultura? Recordam-se de que conseguimos encontrar um vestígio
de essência? Ah! Onde fomos não havia um chapinhado sequer. Ali a beleza estava
à solta e nos corações. Encontramos a exceção.
Sim, Karinha, tão marcante fato ocorreu no mesmo dia em que
Greval voltou para Lúcsia, ou seja, pouco após a união pró-ápice ser reinstaurada.
Aproveitando a belíssima oportunidade que tivemos, fomos ao
irônico-mega-sardônico chou da desconhecidíssima banda “Boca Suja, Os
Detestadores do Sucesso”.
Ah! Não sabíamos ainda do que era capaz a perifeía – ou
centrofeía – reinodistanciada. Descobrimos só e felizmente que os enxotados-da-sociedade
eram lançados naquele vale que estava para-além-dos-mapas. E além-dos-mapas é
que moravam as pessoas, no Reino Sub-Imundo dos Alisamentos Capilares.
O bom-humor tomou-nos a todos majestosamente, mais uma vez.
Um ser cabelocultuante jamais imaginaria tamanha alegria. Era a expressão
absoluta das rimas miseráveis por nós tão adoradas. Era a pré-munição de um
Titiquismo vindouro!
Ah! As horas de espera ao lado dos poucos, mas sinceros desconhecedores-da-higiene-mínima
e conhecedores-da-amizade-máxima, das pessoas que passam sete-anos-sem-lavar-o-corpo,
mas que sete-vezes-por-dia-lavam-a-alma... Como nos esquecer das bebidas feitas
por balconistas-embriagados-pela-vida-e-super-simpáticos-com-a-gente, das
discussões entrecerradas entre nosso-flutuante-humor e o bom-humor-constante-da-perifeía...
À medida que o tempo deslizava e o chou se aproximava tornávamo-nos mais e mais
eufóricos-cultuadores-da-animação, super-amigalhões-de-Baco,
frenéticos-entusiastas-do-ritmo-novo.
A banda que faria a abertura do chou não foi. Os seguranças
que garantiriam a segurança não foram. A polícia que espancaria
indiscriminadamente inocentes não foi! Não foi sequer preciso contratar
serviços especiais para proteger as pessoas da perigosa polícia reinodistântica!
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Lembro-me onírica e perfeitamente do vocalista, Inho,
entrando no palco aos modos de um equino arredio, sem trote e aos coices;
lembro-me de seus primeiros grunhidos e de não ter ouvido sua voz por um impensável
tempo nos chous produzidos pela cultura-que-amassa. É expossível esquecer o
salto dado por Inho entre nós, desfacelando-se no chão e sendo levado à
ambulância mais próxima, pouco depois.
Foram minutos de muita a-tensão. Estávamos felicíssimos e a
banda tocou mesmo sem o vocalista as três primeiras músicas, que dançamos como
se estivéssemos caminhando entre cachoeiras e cataratas em um recanto das
águas. Lembram-se, Card’Osso e Caipira, meus-irmãos-de-leite-poético, como batalhávamos
muito nos assemelhando a antigos gladiadores de um clube-de-lutas-inúteis?
Você, Eduardo Dudu, dançava com minha Bea uma valsa que em nada combinava com o
ritmo tocado e pouco se importava, porque estava feliz e bem-acompanhado. A
senhorita Winehouse, que por ora se ausentava, olhava patética para a música,
mas estava em um frenesi inefável em seu interior. Não perdemos por nada as
três primeiras canções que deturpariam o atual sistema liso-capilar, mas que nada
difamaram, porque o vocalista, como já se disse, fora hospitalizado antes de
começar a cantar.
O quê?! É verdade, João Martins, a amnésia alcoólica já me
impedia de lembrar que, em um momento demofúrico, em meio ao sangue que dele
escorria, surgindo da névoa excessiva e do gelo derretido, entre tombos e uma
dentição agora defasada – como consigo agora perfeitamente visualizar – Inho, o
potrovocalista, retornou ao palco.
E não quer saber de cantar. Está furioso com as notícias
vindas de São Nunca e de São Ninguém, acusando-o e à sua banda de terem o chou
mais luciférico da História! Por isso mesmo, e com muita ênfase, é que seu
maior sucesso, "Um robô efeminado", foi antecedido deste discurso:
- Eu dedico essa música aos verdadeiros religiosos porque
eu sou um filho de Deus e os homossexuais também são. Todos vocês também são
filhos do Deus, meu irmãos de perifeía, porque Ele é um cara muito legal que
gosta muito mais do bom-humor que nós temos que das caras emburradas e
embostadas dos chamados “doutores da lei”.
Era esta a voz do “rei da lama”. E ela chegava somente a
seus vinte farejadores-da-titica, esses únicos fãs que ousaram assistir a seu
chou da turnê "Não fale com a boca cheia, fale com a Boca Suja".
Pouco depois, e já se acalmando, “Satã-Inho”, como foi
apelidado pelos poderosos de São Nunca e São Ninguem, enfureceu-nos com suas
cosmocanções, das quais recordo não recordo de nenhum trecho, mas que muito me
emocionaram, seja pela sua pluriverdade recôndita, seja pelo seu titicante humor
autoirônico, ao qual sempre miramos e admiramos.
Delirávamos como crianças que
recém-descobrem o pirulito roubado. Nossa identificação foi medonha, pois se
seguiam atabalhoadamente as mais deliciosas rimas-miseráveis-ou-abaixo-da-linha-da-miséria,
distantíssimas das rimas magnatas ou imperialistas, vigorantes nos sistemas
burrocráticos da poesia lisense. As ideias pré-titiquistas pulavam e nós
pululávamos, Bea!
E enquanto a
poesia-canalha vibrava no palco, nós não sossegávamos. Começamos a lançar rum e
catuaba para os céus e, inevitavelmente, uns nos outros; começamos a dançar sem
limitação alguma. E fizemos ali mesmo um Encontro Atlântido de Poesia,
recitando poemas titiqueiros doentiamente, tais quais os que se seguem:
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descoberta na ponta de uma
arruaça
Flávia Recabarren, atlântida que
infelizmente não embarcou nesta viagem conosco
Debruçada no balcão da
padaria
ela descansava da noite
anterior.
Escolheu o primeiro doce
da primeira fileira
e sorriu pro atendente.
Achou bonito o dia nublado
e não lavou o telefone
anotado
à caneta no braço direito.
esta fotografia é famosa e se
chama: Flávia Recabarren e Úmero Card’Osso descansam em cima do túmulo de
Alphonsus de Guimaraens
psicotrajetória
extra-expediente
Úmero Card’Osso
ele
chegou do trabalho
afastou
o casal que dançava um tango
afastou-os
com um machado
e
encontrou-a enforcada numa árvore
num
desenho numa gaveta
numa
escultura de Dali
aquele
capeta
no
outro dia, no café da manhã
afastou
uma banda de rock
com
o revólver
e
desligou o despertador
o
sonho e o gerador
de
energia do planeta
ele
chegou ao trabalho
afastou
o chefe que barrava o caminho
com
o pé, com ou sem carinho
só
um pouquinho
para
o lado
e
entrou para a vida
pelado
“Todos
os relógios estão errados”
Marcelo Beso,
atlântido que infelizmente...sumiu para o Sobre-Mundo
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“Eu me sinto um
tiozinho decadente e acabado, que já foi bonito um dia, já foi um moço bem apessoado.
Mas as universitárias acabaram comigo, sugaram minha alma através da uretra. Eu
sempre me entregava, eu bebia com o dinheiro dos pais delas, eu acordava em quitinetes
reviradas, o aparelho de som ligado, eu comia a comidinha congelada que as
mamães mandavam. O coração desarranjado, todo fodido de emprestar calor por aí,
de sustentar sonhos bestas.
Tive um, dois, três amores. Os poemas de guardanapo me
proporcionaram algumas boas fodas. O suficiente para agradecer pelo resto da
vida”.
Flávio, irmão da Flávia, o maior
titiquista não-titiquista
O chou éramos
nós. Éramos a vida. O mundo sempre fica pequeno para o tamanho de nossa
amizade, para a força de nosso mútuo-sabotar! Iluminadissimamente, a
apresentação terminou.
Eia,
atlântidos! Eia, atlântidoides! Atlantidoeiros brincalhões! Que alegria me dá
poder rir junto com todos vocês! E que chou magnífico esse que nos foi
propositado. Que maravilha é o poder da amizade, da roda-de-amigos recomposta
pelo bom-motivo-ou-por-motivo-nenhum!
Nossa única
decepção quanto a essa visita às tangentes-reino-distanciadas ocorreu algumas
semanas depois. Sim, porque os Bocas Sujas, inexplicável e absurdamente como
tudo que se refere àquele povo capirado, passaram a ser ouvidos e adorados,
amados e colocados em videoprogramas gluteocêntricos e logofugidios.
Sem motivos
justos, como é costume, “Os Detestadores do Sucesso” foram condenados à
injustiça-da-fama, à nudez-da-exposição, à pernosticidade-do-reconhecimento.
Estavam acabados, enfim. Não poderiam ser nem nunca mais foram originais. O decreto
do esgostamento intelectual de tal banda pode constar de um fato específico:
abandonaram sua verdadeira imagem – natural, espontânea e desapegada de
qualquer formalidade ou oficialidade – em prol da imagem que deles a mídia
vendia à bobulação. Tiveram que fixar valores pessoais e de grupo e se prender
a eles; tiveram de repetir constantemente posturas que eram só momentâneas para
que tivessem uma “coerência artística e estilística”; tiveram que abrir mão de
qualquer criatividade-arriscada-ao-lucro-das-empresas-de-música para que o
sucesso fosse garantido e contínuo, ainda que cada vez mais vazio.
As minipessoas de microvidas, obviamente,
acreditariam em sua “espontaneidade”; mas eles, alguns dos únicos esclarecidos
autossarcásticos daquele sub-imundo, não poderiam crer. No entanto, creram até
mesmo nas falácias que o jornal contou a seu respeito, pondo em dúvida seu
passado perifeico e amplifeico; de outro modo, embasbacaram-se com seu
neopassado, com a infância luxuosa que de fato viveram nas mansões de Padrid.
Tombaram definitivamente aos pés da Imagem. O supracaos do grupo sobreveio-lhe,
enfim, quando se depararam com inapeláveis-apelativas manchetes, a seu respeito,
na capa do maior jornal lisense – “As Mentiras que a Mídia Conta”:
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A reação dos Bocas Sujas foi
imediata.
CONTINUA...
Na próxima semana, não perca a
valorização do universo feminino de Manifosa e Des Lize, a dona do Bar Sujo.
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