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A reação dos Bocas Sujas foi imediata. Cuspiram no
demo, abraçando definitivamente os dois novos deuses que dominavam o Reino
Sub-Imundo: a deusa Mídia e o deus Sucesso. Ah! Tristeza de um atlântido! Fizeram
chous por todo o reino e foram amados por todo ser humano. Invadiram a imprensa
escrita no papel, a televisiva e a extrenetal. Eram rostos conhecedíssimos em
todo lugar, com uma pseudointimidade absurda com as gentes. Enfim, estavam no
auge do mundo e no fundo dele, ao mesmo tempo.
Isso porque o Sucesso e a Mídia, hoje, são hoje o fim da
arte, Úmero. Ame seu anonimato como possibilidade única de continuidade de seu
projeto artístico mais ou menos sério.
No entanto e
salvadoramente, é preciso dizer que, em um momento de tentação de Baco, Inho contratou
mui sorrateira e plurissacanamente um avião para matá-los em um pseudoacidente.
Morreram todos juntos. Morreram, enfim, como devem fazer os amigos, os sempreamigos.
Como morreremos nós, os atlântidos! Ademais... Tivemos o benefício de ser dos
poucos que puderam presenciar a verdadeira beleza desses que se tornaram,
infelizmente, semideuses lisocabeleiros. Nunca é demais reafirmar: aquele era
um povo necrocultuador.
Parte III
– a composição do belo e sua síntese; uma comemoração catastrófica e; o
surgimento de uma nova heroína: Manisofa
Depois de
acordar, na tarde da Quarta-Encinzas, Greval, herói de nossa gente, contou a
Lúcsia que havia conhecido na noite anterior o famoso filósofo-de-boteco
Souropeaux – a lenda-presente-e-viva, o oposto máximo das
lendas-normais-e-ausentes tão veneradas naquele toxicorreino. A moça muito se
interessou pela Triste Figura, pois tal era motivo de chacota e de riso para
todos, até para os pedintes-nas-horas-vagas, excepcionalmente conhecidos como professores-do-estado.
Segundo a
descrição dada pelo etnodominador, o arvorado Souropeaux era o ser de menos estatos no Reino Sub-Imundo, visto que
nunca fazia chapinha – seus cabelos assemelhavam-se a alguma vassoura, a um
leão-recém-rebelado, a um ouriço-loiro. Somado a isso, era mais pobre que os
operários-do-sindicato-de-reaproveitamento-de-lixo-orgânico e que os
integrantes-da-liga-de-recuperação-do-lixo-hospitalar – defeito deveras grave,
o de ser pobre, no reino. Sua aparência, de modo geral, era a de um ser que
acabara de retornar do Triângulo das Minissaias

Retrato-falado 2
Página 33
Lúcsia quis
saber mais sobre o mito. Ela era um lucivivente ser em meio a um reino
consumidoido; era uma mulher em meio a fêmeas-reprodutoras; era. Greval
prometeu que o apresentaria a ela logo que possível.
O almoço que nossa
diva preparou para seu marido era um banquete de Pratão. Desejava que seu homem
renascesse e transvivesse. Não havia entre eles sinal de discórdia, pois o
brilho-da-estrela iluminava o tombado-satélite. Sim, aquela integração é entendida
por amados que se pluriapaixonam, que são cordiadoradores.
Sobre a mesa,
sobremesas; sob a mesa, pernas e pés: entrelaçados. Tinham o afinco como que o
de um caso que começa, com a vantagem de que cada descoberta a mais
complementava as anteriores. Faziam eles daquele dia um novo primeiro-dia.
Estavam a merecer um ápice, um cume, um momento de comemoração-bacantemente-dionisíaca.
Por isso é que
resolveram ir a um chou, àquele chou. A intenção era a de um perfeito-fecho, de
uma comemoração-das-que-aparecem-na-tevê! No entanto, não conheciam a banda: poderia
ser ela, quem sabe, uma gigantesca-conhecedora de musicalidade. Não sabiam.
Correram o risco, foram atrás; e se todos iam, eles foram.
E eram filas,
tumultos, agito, no que não há novidade, como você bem sabe, Karenzita, nossa
veneradora-do-megalomovimento. O fato é que estava ali a antifilosofia em
formato musical, para que a aclamassem, e eles nem disso sabiam; à espera deles
vibrava já a tóxico-audição-mor, e eles a ansiavam, em uma ignorância passiva. E
depois de um atraso imemorável e ao mesmo tempo totalmente-memorável-por-sua-concordância-com-o-picaretismo-e-a-má-fé,
surgiu a música de abertura do grupo “Eu te amo você”.
Bem notado,
Eduardo Dudu, não farei o inconveniente de expor nesta tão bela obra de apresentação
da sociedade lisense composição de tão baixo calão e talão. Deixemos para o
leitor imaginativo a lembrança daquela sua música mais detestada, mais fixada
em sua mente, aquela de que nunca esqueceu, mesmo sempre querendo. E sigamos!
Os primeiros
versos foram suficientes. Os amantes se olharam apavorados, como quem diz sem
dizer. E não precisaram de neo-ilogismos para entenderem que sairiam mui
sutilmente dali. Desviando da vasta gama populacional ali presente – peões-à-procura-de-bois,
bêbados-sem-mulher, mulheres-sem-essa-ideia-que-chamamos-de-beleza, entre
diversos outros tipos curiosos –, andaram apressados até os portões e correram
logo que passaram por eles, com um claro medo de que os in-seguranças os
obrigassem a ficar porque pagaram.
Ah! Fugiam da
obrigação de permanecer, como não podem fugir os adultos – quando são visitas –
diante de um prato que não lhes apetece; como não pode fugir o professor – bode
expiatório de todos os pais alisados – diante do aluno indisponível para o
aprendizado; como não podem fugir os assalariados – microviventes por desgosto
– diante da fome-nossa-de-cada-dia. Fugiram, enfim. Não quiseram presenciar a
canção que se iniciava: “Sua cabeça pesa/ Não sei por quê.../ Um chapéu bonito/
comprei para você...”. Fugiram em um ato heroico diante daquela sociedade
capetalista; os auros pagos que ficassem para trás!
Sim, Beazinha,
essa postura antimidiática de nossos heróis, nós a consideraremos uma vitória também
nossa! Consideraremos assim que a atlantidoidade toma um pouco conta deles e os
semi-irmana a nós. Não sente, por acaso, certa evolição por parte de Greval e
Lúscia? Sinto e torço, minha cara, pois lhes quero conosco.
- O eu alírico
da canção assemelhava-se a qualquer lisense, de modo mais ou menos explícito ou
consciente, porque nossa bobulação ama o sofrimento e a dor e faz deles motivos
fundamentais para seu dia a dia – dizia Lúcsia a Greval, no caminho de casa.
- Não bastava
toda uma letra trilhada de rastejares, de subserviência, de uma
moral-rebanhesca, ah! Uma letra que se preze não destaca tão vulgar flagrante
de traição, ao estilo filme enlatado e produzido para
massas-sem-massa-encefálica. Isso é pura verborreia para a poesia que foi nosso
dia – completou Greval. E nisso sorriu para sua inspiração.
Foram para
casa. Seu universo era interior, sua força vinha dos dois, não deixariam que
influências exteriores prejudicassem aquilo que só cabia a quem amava.
Ora, amigos,
que diferença há entre os chous. Que benefício tivemos, amigos! A nossa
alegria, a banda ouvida, o sarau declamado! Está incorporado em nós o faro para
as boas coisas, com ou sem o dinheiro, com e com amigos, sempre, Úmero!
Já em casa,
Greval e Lúcsia ligaram a tevê e constataram uma estranha notícia no jornal
televisivo matutino “As Mentiras Que a Mídia Conta”: uma mulher de menos de
trinta anos, com cabelos que para muitos recordariam os fiapos de espigas-de-milho,
vinha criando fama no reino devido a seus atos terroristas, como: explosões de
fábricas de chapas-alisadoras-de-rico, sumiço de
dezenas-de-aparelhos-televisores, entre outros atos posteriormente esclarecidos.
Nisso, não havia novidade: nem ao menos graça. Desde que primeiro houvesse o
desastre, e depois houvesse tentativas de se remediar, a “normalidade” não era
afetada. O caos só surgiu a partir de um vídeo caseiro, enviado pela
terrorista, com a presença sem-lustre do presidente do sindicato-dos-transportes-coletivos-de-rebanhos-humanos.
Este aparecia lendo um texto afirmando categoricamente que dez dos dez mil
ônibus da rede de Distúrbico iriam explodir no dia seguinte. Logo após,
aparecia a moça dos fiapos de espiga-de-milho, que se autodenominava
“Manisofa”, entre estridentes gritos socioaterradores:
- Isso é muito
divertido! Isso é muito divertido! O trânsito desta cidade vai parar porque dez
onibusinhos vão pelos ares. Uma capital como Distúrbico se rende ao caos porque
0,1% de seus “transportes-coletivos-de-gado-urbano” explodirá! A ordem tão
pregada pela sociedade é uma farsa! A seriedade é um absurdo!
Apesar de
assustados, Greval e Lúcsia foram dormir tranquilos, pois não precisavam dos
transportes coletivos, visto que andavam em seu carro quase-zero quilômetro,
movido a pouca-gasolina-e-muito-sangue-de-peões, subentendendo alguma mensagem
do tipo: “eu quero que se exploda a perifeía toda”.
Sim, Salles,
não me olhe com esta estranha face, que é a sua: nossos heróis também possuíam
suas contradições.
Parte IV
– Um aparte para Des Lize e sua humanidade até então não citada devidamente
“Senta na cama em frente à penteadeira
Vê no espelho o seu rosto abatido
Neste momento com os olhos rasos d'água
Vê seu futuro totalmente destruído
O sono chega e a envolve de mansinho
Quando ela sonha ser rainha de um lar
Por que num mundo onde ninguém é perfeito
Ela também tem o direito de sonhar”
Vê no espelho o seu rosto abatido
Neste momento com os olhos rasos d'água
Vê seu futuro totalmente destruído
O sono chega e a envolve de mansinho
Quando ela sonha ser rainha de um lar
Por que num mundo onde ninguém é perfeito
Ela também tem o direito de sonhar”
Barrerito
Em frente ao
espelho, Deslize passa sua mão esquerda nos cabelos. Vê que seu rosto está e é
triste; está mal maquiada; sente-se fraca e sensível. É nesse momento que sua
alma chora a existência perdida. Ela sabe e vê em seu reflexo que seu futuro foi
despedaçado, quebrado em cacos sem beleza. Lembra até que não queria muito, só
um futuro, uma família, um lar decente e feliz. Percebe que teve poucas mas até
boas chances e as perdeu uma por uma. Quando menina, queria ser artista. Com o
casamento precoce, apressado, aos quinze anos, grávida, foi-se o sonho.
Seu filho
morrera em seu ventre, matando-lhe o útero e as esperanças de novos frutos. Seu
marido trata-a como a um trapo e ela vive de atender pinguços, bebuns,
sustentando seu homem vagabundo e sanguessuga.
Então ela
chora profundamente, um choro que terá que engolir no dia seguinte para encarar
novamente a rotina, a mesma de todos os dias. Já fora razoavelmente bela,
modestamente sonhadora. Sabe agora, no entanto, que seu destino é afundar-se
cada vez mais, numa decadência inevitável e demasiado humana, até que chegue a
doença, a miséria e a talvez salvadora morte. Foram só deslizes...
Parte V
– Código de não-direitos-do-povo; código de direitos-do-povo
“Eu, o presidente, faço
saber que eu próprio sanciono a seguinte Lei por mim mesmo produzida:
Art. 1º: Não é permitido que uma pessoa que seja considerada bonita
pela sociedade fique um dia sequer sem alisar os cabelos, sendo a medida
punitiva para tão feia descompostura a pena de subvida (que é baseada na
obrigatoriedade do trabalho servil sem consciência crítica, no enfrentamento de
filas extensas para a pior das assistências hospitalares, na farsa contínua de
uma possível melhora da educação pública e no consentimento da manipulação de
seus ideais por um pequeno grupo interessado somente em si mesmo). Fica sendo esta
a única restrição à nossa preciosa elite.
Art. 2º Esta Lei dispõe, principalmente, sobre a
desproteção integral para os seres de
subvida.
Art. 3º Além dos termos referidos no art. 1°, considera-se ainda
ser de subvida, para os efeitos desta
Lei, qualquer pessoa de classe social rastejante, sendo a ela pertencente de
nascença ou tendo-a adquirido, e nela permanecido até depois de sua morte e de
seu sepultamento.
Art. 4º Os seres de subvida não gozam de nenhum direito
fundamental inerente à elite, tendo total prejuízo de qualquer proteção,
faltando-lhes, por lei e por outros meios, todas as oportunidades, a fim de
lhes dificultar, e sempre que possível, impossibilitar-lhes o desenvolvimento
físico, mental, moral, espiritual e social, caracterizando assim uma
pseudoliberdade e uma forjada dignidade.
Art. 5º É dever da elite, da sociedade lisense em geral e
meu dever particular assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos
não-direitos para que devam provocar a doença, a fome, a má-educação, a
ociosidade física, o tédio, o amadorismo, a ignorância, a repugnância, a
grosseria, a ilusão de liberdade e o conflito constante tanto na questão
familiar quanto na social para todos os seres
de subvida.
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Art. 6º Todo ser de subvida será objeto de
negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão,
devendo ser punido na forma da Lei qualquer pessoa que atente, por ação ou
omissão, aos seus não-direitos fundamentais.
Art. 7º Na
interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins sociais elitistas a que
ela se dirige, as exigências do mal incomum, os não-direitos e totais-deveres
dos subviventes, restando, em caso de qualquer dúvida quanto à hermenêutica, o
prejuízo dos últimos.”
Greval não se resignava ao neocódigo. Aquilo não lhe fazia o
bem que se esperava que fizesse a um etnodominador. Ora, atlântidos-atormentados,
nosso herói está cordiferido com tais leis, está mortificado com a aristojustiçaria,
e oferece ao manicrata João Pedro II – para nossa grande honra – uma
contraproposta...
CONTINUA...
Na próxima semana, não perca o talvez
início da decadência de Greval e a ilógica governamental lisense.
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