Eça
de Queirós
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realista, mas com toques românticos no presente livro
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narrativas lentas
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muitas descrições
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crítica à cidade
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elogio ao campo
A
Cidade e as Serras
Ajuste da civilização
O romance é escrito em primeira pessoa
por José Fernandes, um personagem secundário. O narrador centraliza seu
interesse na figura de um certo Jacinto,
descrevendo-o como um homem extremamente forte e rico, que, embora tenha nascido em Paris, no
202 dos Campos Elíseos, tem seus proventos recolhidos de Portugal, onde
a família possui extensas terras, desde os tempos de D. Dinis, com plantações e
produção de vinho, cortiça e oliveira, que lhe rendem bem. O avô de Jacinto,
também Jacinto, gordo e rico, a quem chamavam D. Galeão, era um fanático
miguelista. Quando D. Miguel deixou o poder, Jacinto Galeão exilou-se
voluntariamente em Paris, lá morrendo de indigestão. D. Angelina Fafes, após a
morte do marido, não regressou a Portugal, e, em Paris, criou seu filho, o
franzino e adoentado Cintinho que se casou com a filha de um desembargador,
nascendo desta união nosso protagonista.
LER
Desde pequeno
Jacinto brilhara, quer por sua inteligência, quer por sua capacidade. Aos 23
anos tornou-se um soberbo rapaz, vestido impecavelmente, cabelos e bigodes bem
tratados, e feliz da vida. Tudo de melhor acontecia com ele, sendo chamado
pelos companheiros de “Príncipe da Grã-Ventura”. Positivista animado, Jacinto
defendia a idéia de que “o homem só é superiormente feliz quando é
superiormente civilizado”. A maior preocupação de Jacinto era defender a tese de
que a civilização é cidade grande, é máquina e progresso que chegavam através
do fonógrafo, do telefone cujos fios cortam milhares de ruas, barulhos de
veículos, multidões... Civilização é enxergar à frente.
Com estes olhos que recebemos da Madre Natureza, lestos e sãos, nós podemos
apenas distinguir além, através da Avenida, naquela loja, uma vidraça alumiada.
Nada mais! Se eu porém aos meus olhos juntar os dois vidros simples de um
binóculo de corridas, percebo, por trás da vidraça, presuntos, queijos, boiões
de geléia e caixas de ameixa seca. Concluo, portanto, que é uma mercearia.
Obtive uma noção: tenho sobre ti, que com os olhos desarmados vês só o luzir da
vidraça, uma vantagem positiva. Se agora, em vez destes vidros simples, eu
usasse os de meu telescópio, de composição mais científica, poderia avistar
além, no planeta Marte, os mares, as neves, os canais, o recorte dos golfos,
toda a geografia de um astro que circula a milhares de léguas dos Campos
Elísios. É outra noção, e tremenda! Tens aqui, pois, o olho primitivo, o da
natureza, elevado pela Civilização à sua máxima potência da visão. E desde já,
pelo lado do olho, portanto, eu, civilizado, sou mais feliz que o incivilizado,
porque descubro realidades do universo que ele não suspeita e de que está
privado. Aplica esta prova a todos os órgãos e compreende o meu princípio.
Enquanto à inteligência, e à felicidade que dela se tira pela incansável
acumulação das noções, só te peço que compares Renan e o Grilo... Claro é,
portanto, que nos devemos cercar de Civilização nas máximas proporções para
gozar nas máximas proporções a vantagem de viver.
Em fevereiro de 1880, Zé Fernandes
foi chamado pelo tio e parte para Guiães e, somente após sete anos de vida
na província, retorna e reencontra Jacinto no 202 dos Campos Elíseos.
O narrador presenciou coisas espantosas: um elevador para ligar dois
andares do palacete; no gabinete de trabalho havia aparelhos mecânicos cheios
de artifício; e, enquanto Jacinto escreve para Madame d’Oriol, José Fernandes
visita uma enorme biblioteca de trinta mil títulos, os mais diversos
possíveis, dos mais renomados autores às mais diferentes ciências. A visita
termina com uma refeição em que foram servidas as mais sofisticadas iguarias
e um convite de Jacinto ao narrador que ele se hospede no 202.
Primeiros desencantos
Zé Fernandes, a partir daí, pôde observar com maior atenção o amigo; suas intensas atividades o desgastavam e,
com o passar do tempo, constatou que Jacinto foi perdendo a
credulidade, percebendo a futilidade das pessoas com quem convivia, a
inutilidade de muitas coisas da sua tão decantada civilização. Nos raros
momentos em que conseguiam passear, confessava ao amigo que o barulho das ruas
o incomodava, a multidão o molestava: ele atravessava um período de nítido
desencanto. Alguns incidentes contribuíram sobremaneira para afetar o
estado de ânimo de Jacinto: o rompimento
de um dos tubos da sala de banho, fazendo jorrar água quente por todo o quarto,
inundando os tapetes, foi o bastante para aparecer uma pilha de telegramas,
alguns inclusive com um riso sarcástico, com o do Grão-duque Casimiro, dizendo
que não mais apareceria pelo 202 sem que tivesse uma bóia de salvação.
As reuniões
sociais estavam ficando maçantes. Em uma
recepção ao Grão-Duque, Jacinto já não agüentava o farfalhar das sedas das
mulheres quando lhes explicava o uso dos diferentes aparelhos, o tetrafone, o
numerador de páginas, o microfone... O criado veio lhe informar que o peixe a ser servido ficara preso no elevador
e os convidados puseram-se a pescá-lo, inutilmente, porque o peixe acabou
não indo para a mesa, fato que deixou ainda mais aborrecido o anfitrião.
Claramente percebia eu que o meu Jacinto atravessava uma densa névoa de
tédio, tão densa, e ele tão afundado na sua mole densidade, que as glórias ou
os tormentos de um camarada não o comoviam, como muito remotas, inatingíveis,
separadas da sua sensibilidade por imensas camadas de algodão. Pobre Príncipe
Grã-Ventura, tombado para o sofá de inércia, com os pés no regaço do pedicuro!
Em que lodoso fastio caíra, depois de renovar tão brava mente todo o recheio
mecânico e erudito do 202, na sua luta contra a força e a matéria!
Preocupado, Zé
Fernandes consulta o fiel criado Grilo sobre o que está ocorrendo com Jacinto. O homem respondeu com tamanho conhecimento de causa que
espantou o narrador. Uma simples palavra poderia definir todo o tédio de que
era acometido: o patrão sofria de
“fartura”.
Era fartura! O meu Príncipe sentia abafadamente a fartura de Paris; e na
Cidade, na simbólica Cidade, fora de cuja vida culta e forte (como ele outrora
gritava, iluminado) o homem do século XIX nunca poderia saborear plenamente a
"delícia de viver", ele não encontrava agora forma de vida, espiritual
ou social, que o interessasse, lhe valesse o esforço de uma corrida curta numa
tipóia fácil. Pobre Jacinto! Um jornal velho, setenta vezes relido desde a
crônica até aos anúncios, com a tinta delida, as dobras roídas, não enfastiaria
mais o solitário, que só possuísse na sua solidão esse alimento intelectual, do
que o parisianismo enfastiava o meu doce camarada! Se eu nesse verão
capciosamente o arrastava a um café-concerto, ou ao festivo Pavilhão
d'Armenonville, o meu bom Jacinto, colado pesadamente à cadeira, com um
maravilhoso ramos de orquídeas na casaca, as finas mãos abatidas sobre o castão
da bengala, conservava toda a noite uma gravidade tão estafada, que eu,
compadecido, me erguia, o libertava, gozando a sua pressa em abalar, a sua fuga
de ave solta... Raramente (e então com veemente arranque como quem salta um
fosso) descia a um dos seus clubes, ao fundo dos Campos Elíseos. Não se ocupara
mais das suas sociedades e companhias, nem dos telefones de Constantinopla, nem
das religiões esotéricas, nem do bazar espiritualista, cujas cartas fechadas se
amontoavam sobre a mesa de ébano, de onde o Grilo as varria tristemente como o
lixo de uma vida finda. Também lentamente se despegava de todas as sua
convivências. As páginas da agenda cor-de-rosa murcha andavam desafogadas e
brancas. E se ainda cediam a um passeio de mail-coach, ou a um convite para
algum castelo amigos dos arredores de Paris, era tão arrastadamente, com um
esforço saturado ao enfiar o paletó leve, que me lembrava sempre um homem,
depois de um gordo jantar de província, a estalar, que, por polidez ou em
obediência a um dogma, devesse ainda comer uma lampreia de ovos!
Jazer, jazer em casa, na segurança das portas bem cerradas e bem fendidas
contra toda a intrusão do mundo, seria uma doçura para o meu Príncipe se o seu
próprio 202, com todo aquele tremendo recheio de Civilização, não lhe desse uma
sensação dolorosa de abafamento, de atulhamento!
Certo dia, enquanto esperavam ser
recebidos por Madame d'Oriol, José Fernandes e Jacinto subiram à Basílica do
Sacré-Coeur, em construção no alto de Montmartre. Ao se recostarem na borda do
terraço, puderam contemplar Paris envolta em uma nuvem cinzenta e fria,
motivando profunda reflexões, pois a cidade - tão cheia de vida, de ouro, de
riquezas, de cultura e resplandecência, incluindo o soberbo 202, com todas as
suas sofisticações - estava agora sucumbida sob as nuvens cinzentas, a cidade
não passava de uma ilusão.
(...) uma ilusão! E a mais marga, porque o homem pensa ter na cidade a base
de toda a sua grandeza e só nela tem a fonte de toda a sua miséria. Vê,
Jacinto! Na Cidade perdeu ele a força e beleza harmoniosa do corpo e se tornou
esse ser ressequido e escanifrado ou obeso e afogado em unto de ossos moles
como trapos, de nervos trêmulos como arames, com cangalhas, com chinós, com
dentauros de chumbo sem sangue, sem febre, sem viço, torto, corcunda - esse ser
em que Deus ,
espantado , mal pôde reconhecer o seu esbelto e rijo e nobre Adão! Na Cidade
findou a sua liberdade moral; cada manhã ela lhe impõe uma necessidade, e cada
necessidade o arremessa para uma dependência; pobre e subalterno, a sua vida é
um constante solicitar, adular, vergar, rastejar, aturar: rico e superior como
um Jacinto, a sociedade logo o enreda em tradições, preceitos, etiquetas,
cerimônias, prazer, ritos, serviços mais disciplinares que os de um cárcere ou
de um quartel... A sua tranqüilidade (bem tão alto que Deus com ele recompensa
os santos) onde está, meu Jacinto? Sumida para sempre, nessa batalha
desesperada pelo pão ou pela fama, ou pelo poder, ou pelo gozo, ou pela fugidia
rodela de ouro! Alegria como a haverá na Cidade para esses milhões de seres que
tumultuam na arquejante ocupação de desejar - e que, nunca fartando o desejo,
incessantemente padecem de desilusão, desesperança ou derrota? Os sentimentos
mais genuinamente humanos logo na cidade se desumanizam! Vê, meu Jacinto! São
como luzes que o áspero vento do viver social não deixa arder com serenidade e
limpidez; e aqui abala e faz tremer; e além brutamente apaga; e adiante obriga
a flamejar com desnaturada violência. As amizades nunca passam de alianças que
o interesse, na hora inquietada da defesa ou na hora sôfrega do assalto, ata
apressadamente com um cordel apressado, e que estalam ao menor embate da rivalidade
ou do orgulho. E o amor, na Cidade, meu gentil Jacinto? Considera esses vastos
armazéns com espelhos; onde a nobre carne de Eva se vende, tarifada ao arrátel,
como a de vaca! Contempla esse velho deus do himeneu, que circula trazendo em
vez do ondeante facho da paixão a apertada carteira do dote! (...) Mas o que a
Cidade mais deteriora no homem é a Inteligência, porque ou lha arregimenta
dentro da banalidade ou lha empurra para a extravagância. Nesta densa e
pairante camada de idéias e fórmulas que constitui a atmosfera mental das
cidades, o homem que a respira, nela envolto, só pensa todos os pensamentos já
pensados só exprime todas as expressões já exprimidas; ou então, para se
destacar na pardacenta e chata rotina e trepar ao frágil andaime da gloríola,
inventa num gemente esforço, inchando o crânio, uma novidade disforme que
espante e que detenha a multidão. (...) Assim, meu Jacinto, na Cidade, nesta
criação tão antinatural onde o solo é de pau e feltro e alcatrão, e o carvão
tapa o céu, e agente vive acamada nos prédios com o paninho nas lojas, e a
claridade vem pelos canos, e as mentiras se murmuram através de arames - o
homem aparece como uma criatura anti-humana, sem beleza, sem força, sem
liberdade, sem riso, sem sentimento, e trazendo em si uma espírito que é
passivo como um escravo ou impudente como um histrião... E aqui tem o belo
Jacinto o que é a bela Cidade!
Zé Fernandes continuou a filosofar, acrescentando preocupações de caráter
pessoal, indagando a posição dos pequenos que, como vermes, se arrastavam pelo
chão, enquanto os poderosos os massacravam; eles iam às óperas aquecidos,
lançando aos pobres não mais que algumas migalhas. Religiosamente, acreditava
ser necessário um novo Messias que ensinasse às multidões a humildade e a mansidão.
Só uma estreita e reluzente casta goza na Cidade e os gozos especiais que
ele a cria. O resto, a escura, imensa plebe, só nela sofre, e com sofrimento
especiais, que só nela existem! (...) A tua Civilização reclama incansavelmente
regalos e pompas, que só obterá, nesta marga desarmonia social, se o capital
der ao trabalho, por cada arquejante esforço, uma migalha ratinhada.
Irremediável é, pois, que incessantemente a plebe sirva, a plebe pene! A sua
esfalfada miséria é a condição do esplendor sereno da Cidade. (...)
Pensativamente deixou a borda do terraço, como se a presença da Cidade,
estendida na planície, fosse escandalosa. E caminhamos devagar, sob a moleza
cinzenta da tarde, filosofando - considerando que para esta iniqüidade não
havia cura humana, trazida pelo esforço humano. Ah, os Efrains, os Trèves, os
vorazes e sombrios tubarões do mar humano, só abandonarão ou afrouxarão a
exploração das plebes, se uma influência celeste, por milagre novo, mais alto
que os milagres velhos, lhes converter as almas! O burguês triunfa, muito
forte, todo endurecido no pecado - e contra ele são impotentes os prantos dos
humanitários, os raciocínios dos lógicos, as bombas dos anarquistas. Para
amolecer tão duro granito só uma doçura divina. Eis pois a esperança da Terra
novamente posta num Messias!...
De Schopenhauer ao Eclesiastes: pessimismo
Como já havia
planejado, o narrador partiu para uma viagem pela Europa e, ao retornar,
procurou o amigo e tentou descobrir o que lhe passava na alma, pois encontrou-o
mais pessimista que nunca, depressão revelada pelas leituras do Eclesiastes e
do filósofo pessimista Schopenhauer. Nestas leituras, encontrava um certo amparo
aos comprovar que todo mal era resultante de uma lei universal e, a partir
daí, encontrou uma grata ocupação - maldizer a vida. Ao mesmo tempo, sobrecarregou
sua existência com fervores humanísticos. Mas de nada adiantava, pois
Jacinto estava desolado. No inverno escuro e pessimista, Jacinto acordou
certa manhã e comunicou a José Fernandes que esta de partida para
Tormes. Decidiu viajar ao receber uma carta de Silvério, seu procurador, que
dizia estarem concluídos os trabalhos de reerguimento da capela para onde
seriam translados os restos mortais de seus avós que ele não conhecera, mas que
o 202 estava cheio de recordações.
Os
preparativos para a viagem envolveram uma mudança da civilização para as
serras. Jacinto encaixotou camas de penas, banheiras, cortinas, divãs,
tapetes, livros, despachou tudo para poder enfrentar com conforto um mês nas
serras. Enquanto isso; renascia nele o amor pela cidade.
Partiram os
dois amigos de volta a Portugal. As cidades passavam pelas janelas do trem: da
França para a Espanha, da Espanha para Portugal... Tomado por uma suave emoção, José Fernandes estava feliz em
rever a pátria; Jacinto, aborrecido e
enfadado principalmente porque, em Medina (Espanha), as malas ficaram em
compartimentos errados quando foi feita a baldeação. O narrador, com o
intuito de aclamar o amigo, diz-lhe que a Companhia cuidaria de tudo. E
ficaram os dois só com a roupa do corpo. Enfim, chegaram a Tormes.
...e ambos em pé, às janelas, esperamos com alvoroço a pequenina estação de
Tormes, termo ditodoso das nossas provaçõe4s. Ela apareceu enfim, clara e
simples, à beira do rio, entre rochas, com sues vistoso girassóis enchendo um
jardinzinho breve, as duas altas figueiras assombreando o pátio, e por trás, a
serra coberta de velho e denso arvoredo.
Desembarcaram em Tormes, onde o narrador encontrou o velho amigo Pimenta, chefe
da estação. Após apresentar-lhe o senhor de Tormes, indagou por Silvério, o procurador de Jacinto em terras
portuguesas. Começaram então outros desastres da viagem. Silvério não os aguardava: havia partido há
dois meses para o Castelo de Vide. Os criados Grilo e Anatole, aparentemente
estavam com as 23 malas em outro compartimento, não foram encontrados, o trem
apitou e partiu, deixando os dois sem nada. Não havia cavalos para
atravessarem a serra, pois Melchior, o
caseiro, não os esperava senão para o mês seguinte. Pimenta arranjou-lhes
uma égua e um burro e ambos seguiram serra cima, esquecendo, por alguns
instante, os infortúnios passados enquanto contemplavam a beleza da paisagem. O
pior ainda estava por acontecer: os
caixotes despachados de Paris há quatro meses não haviam chegado, e o mais
civilizado dos homens estava totalmente à mercê das serras. Como ninguém os
esperava, a casa não estava pronta
para recebê-los, a reforma
acontecia devagar, os telhados ainda continuavam sem telhas, a vidraças sem
vidros. Zé Fernandes sugeriu que rumassem para a casa de sua tia Vicência em
Guiães e Jacinto retrucou que ia mesmo para Lisboa.
Melchior arranjou como pôde um jantarzinho, caseiro e simples, longe das
comidas sofisticadas, das taças de cristal, dos metais e porcelanas. Uma comida
que serviu para matar gostosamente a fome dos viajantes. O senhor de Tormes regalou-se com o jantar que lhe parecera, à primeira
vista, insuportável; e o caseiro, diante das manifestações de regozijo perante
a comida, pensou que seu senhor passava fome em Paris.
O bom caseiro sinceramente cria que, perdido nesses remotos Parises, o
senhor de Tormes, longe da fartura de Tormes, padecia fome e minguava... E o
meu Príncipe, na verdade, parecia saciar uma velhíssima fome e uma longa
saudade da abundância, rompendo assim, a cada travessa, em louvores mais
copiosos. Diante do louro frango assado no espeto e da salada aquele apetecera
na horta, agora temperada com um azeite da serra digno dos lábios de Platão,
terminou por bradar: - "É divino!" Mas nada o entusiasmava como um
vinho de Tormes, caindo do alto, da bojuda infusa verde - um vinho fresco,
esperto, seivoso, e tendo mais alma, entrando mais na alma, que muito poema ou
livro santo. Mirando, à vela de sebo, o copo grosso que ele orlava de leve
espuma rósea, o meu Príncipe, com um resplendor de otimismo na face, citou
Virgílio:
- Quo te carmina dicam, Rethica? Quem dignamente te cantará, vinho
amável desta serras?
Após o jantar, ambos ficaram contemplando o céu cheio de estrelas, passaram a
ver os astros que na cidade não se dignavam ou não conseguiam observar. O narrador ia-se deixando levar por um
contato tão estreito com a paisagem, que em breve surgia uma identificação
total do homem com a natureza e em tudo percebia-se Deus, num claro processo
panteísta muito comum entre os romântico e que Eça passou a assumir.
- Oh Jacinto, que estrela é esta, aqui, tão viva, sobre o beiral do telhado?
- Não sei... E aquela, Zé Fernandes, além, por cima do pinheiral?
- Não sei.
Não sabíamos. Eu, por causa da espessa crosta de ignorância com que saí do
ventre de Coimbra, minha mãe espiritual. Ele, porque na sua biblioteca o
possuía trezentos e oito tratados sobre astronomia, e o saber assim acumulado,
forma um monte que nunca se transpõe nem se desbasta. Mas que nos importava que
aquele astro além se chamasse Sírio e aquele outro Aldebarã? Que lhes importava
a eles que um de nós fosse Jacinto, outro Zé? Eles tão imensos, nós tão
pequeninos, somos a obra da mesma vontade. E todos, Uranos ou Lorenas de
Noronha e Sande, constituímos modos diversos de um ser único, e as nossas
diversidades esparsas somam na mesma compacta unidade. Moléculas do mesmo todo,
governadas pela mesma lei, rolando para o mesmo fim... Do astro ao homem, do
homem à flor do trevo, da flor do trevo ao mar sonoro – tudo é o mesmo corpo,
onde circula como um sangue, o mesmo deus. E nenhum frêmito de vida, pormenor,
passa numa fibra desse sublime corpo, que se não repercuta em todas, até às
mais humildes, até às que parecem inertes e invitais. Quando um sol que não
avisto, nunca avistarei, morre de inanição nas profundidades, esse esguio galho
de limoeiro, embaixo na horta, sente um secreto arrepio de morte; e, quando eu
bato uma patada no soalho de Tormes, além o monstruoso Saturno estremece, e
esse estremecimento percorre o inteiro Universo! Jacinto abateu rijamente a mão
no rebordo da janela. Eu gritei:
- Acredita! ...O sol tremeu.
E depois ( como eu notei) devíamos considerar que, sobre cada um desses
grãos de pó luminoso, existia uma criação, que incessantemente nasce, perece,
renasce.
O cansaço vence os dois viajantes. José
Fernandes adormece sob os apelos de Jacinto para que lhe enviasse algumas peças
brancas e lhe reservasse alojamento em um bom hotel de Lisboa. Uma semana
depois que José Fernandes havia partido para Guiães, recebeu suas malas e
imediatamente enviou um telegrama para Lisboa, endereçado ao hotel Bragança,
agradecendo pela bagagem que foi encontrada e alegrando-se pelo amigo estar
novamente gozando os privilégios de seres civilizados. No entanto, não obteve
resposta. Certo dia, o narrador voltando de Flor da Malva, da casa de sua prima
Joaninha, parou na venda de Manuel Rico, e ficou sabendo algo surpreendente
através do sobrinho de Melchior: Jacinto permanecia em Tormes já há cinco
semanas. Ao visitar Jacinto, José Fernandes o encontrou totalmente mudado,
física e mentalmente. Nada nele denunciava um homem franzino; estava encorpado,
corado, como um verdadeiro montês.
Mas o meu novíssimo amigo, debruçado da janela, batia as palmas – como Catão
para chamar os servos, na Roma simples. E gritava:
- Ana Vaqueira! Um copo de água, bem lavado, da fonte velha!
Pulei, imensamente divertido:
- Oh Jacinto! E as águas carbonatadas? E as fosfatadas? E as esterilizadas?
E as sódicas?...
O meu Príncipe atirou os ombros com um desdém soberbo. E aclamou a aparição
de um grande copo, todo embaciado pela frescura nevada da água refulgente, que
uma bela moça trazia num prato.
Um homem de bem com a vida
Era um outro
Jacinto a quem o campo já não mais era insignificante. Cada momento novo era
uma nova e alegre descoberta. Enfim, era um homem de bem com a sua vida.
Aproveitando a presença do amigo, Jacinto providenciou a transladação dos
corpos de seus antepassados para a Capelinha da Carriça, agora reconstruída. Zé
Fernandes, hábil observador do amigo, percebeu que Jacinto não se contentava
em ser o apreciador passivo dos encantos da natureza. Ele queria participar de
tudo, e lhe surgiam grandes idéias como encher pastos, construir currais
perfeitos, máquinas para produzir queijos...
Certo dia, ao
percorrer seus domínios, Jacinto conheceu o outro lado da serra: uma criança
muito franzina viera pedir socorro para a mãe agonizante. A partir desse
momento, as decisões de Jacinto tomaram novo rumo, pois ele começou a
se preocupar com o lado triste da serra, e passou a fazer caridade, reconstruir
casa, dar novo alento à vida dos humildes. Em uma das inúmeras visitas que
lhe fez o narrador, Jacinto confessou que pretendia introduzir um pouco de
civilização naqueles cantos tão rústicos. O povo da região começou a
agradecer as benfeitorias e logo passou a circular a lenda que o senhor de
Tormes era D. Sebastião que havia voltado para ressuscitar Portugal.
Convidado por Zé Fernandes para o aniversário
de tia Vicência, Jacinto encontraria aí a oportunidade de conhecer seus
vizinhos, outros proprietários. No entanto, a recepção não foi aquilo que o
narrador esperava. Havia uma frieza por
parte dos habitantes da região, exceto tia Vicência que o recebeu como
verdadeiro sobrinho. Ao terminarem a ceia, vieram a saber porquê daquela
frieza: eles pensavam que o senhor de
Tormes fosse miguelista como o avô e que pretendia restituir D. Miguel ao poder.
E só compreendi, na sala, quando o Dr. Alípio, com sua chávena de café e o
charuto fumegante, me disse, num daqueles seus olhares finos, que lhe valiam a
alcunha de “Dr. Agudos:” – ‘Espero que ao menos, cá por Guiães, não se erga de
novo a forca!...’ E o mesmo fino olhar me indicava a D. Teotônio, que arrastara
Jacinto para entre as cortinas de uma janela, e discorria, com um ar de fé e de
mistério. Era o miguelismo, por Deus! O bom D. Teotônio considerava Jacinto
como um hereditário, ferrenho miguelista, - e na sua inesperada vinda ao solar
de Tormes, entrevia uma missão política, o começo de um a propaganda enérgica,
e o primeiro passo para uma tentativa de restauração. E na reserva daqueles
cavalheiros, ante o meu Príncipe, eu senti então a suspeita liberal, o receio
de uma influência rica, novas, nas eleições próximas, e a nascente irritação
contra as velhas idéias, representadas naquele moço, tão rico, de civilização
tão superior. Quase entornei o café, na alegre surpresa daquela sandice. E
retive o Melo Rebelo, que repunha a chávena vazia na bandeja, fitei, com um
pouco de riso, o “Dr. Agudo”.
Este jantar
serviu de pretexto para o narrador mostrar a mentalidade atrasada da sociedade
serrana e aquilo que a fazia sorrir Jacinto era, na verdade, um abismo entre a
ignorância e o progresso. A serra estava impregnada de uma mentalidade
retrógada, ainda absolutista, enquanto no final do século polvilhavam novas
teorias e doutrinas filosóficas e políticas. Tentou-se ainda um jogo de
voltarete para animar a noite, mas a ameaça de uma a tempestade levou os
convidados a baterem em retirada.
A manhã seguinte estava fresca e clara,. José Fernandes levou o amigo até Flor
da Malva, para visitar sua prima Joaninha que não pudera comparecer à reunião,
pois o pai, Adrião, estava acamado. No
caminho, encontraram João Torrado, um velho eremita que supôs estar diante de
D. Sebastião. Esta figura ilustrava o lado da profundidade do mito na
mentalidade simples, saudando Jacinto como um profeta, e tratando-o como “pai
dos pobres”. Nele estão representadas a sabedoria e a simplicidade do povo.
E um estranho velho, de longos cabelos brancos, barbas brancas, que lhe
comiam a face cor de tijolo, assomou no vão da porta, apoiado a um bordão, com
uma caixa de lata a tiracolo, e cravou em Jacinto dois olhinhos de um brilho
negro, que faiscavam. Era o tio João Torrado, o profeta da serra... Logo lhe
estendi a mão, que ele apertou, sem despregar de Jacinto os olhos, que se
dilatavam mais negros. Mandei vir outro copo, apresentei Jacinto, que corara,
embaraçado.
- Pois aqui tem, o senhor de Tormes, que fez por aí todo esse bem à pobreza.
O velho atirou para ele bruscamente o braço, que saía cabeludo e quase
negro, de uma manga muito curta.
- A mão!
E quando Jacinto lha deu, depois de arrancar vivamente a luva, João Torrado
longamente lha reteve com um sacudir lento e pensativo murmurando:
- Mão real, mão de dar, mão que vem de cima, mão já rara!
Depois tomou o copo, que lhe oferecia o Torto, bebeu com imensa lentidão,
limpou as barbas, deu um jeito à correia que lhe prendia a caixa de lata, e
batendo com aponta do cajado no chão:
- Pois louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo, que por aqui me trouxe, que
não perdi o meu dia, e vi um homem!
Eu então debrucei-me para ele, mais em confidência:
- Mas, ó tio João, ouça cá! Sempre é certo você dizer por aí, pelos sítios,
que el-rei?D. Sebastião voltará?
O pitoresco velho apoiou as duas mãos sobre o cajado, o queixo da espalhada
barba sobre as mãos, e murmurava, sem nos olhar, como seguindo a procissão dos
seus pensamentos:
- Talvez voltasse, talvez não voltasse... Não se sabe quem vai, nem quem
vem.
A chegada a
Flor de Malva prepara o desfecho do romance. Joaninha, que não se apresenta sequer
uma fala na narrativa, jovem de uma formosura ímpar estaria destinada a ser a
senhora de Tormes.
Mas, à porta, que de repente se abriu, apareceu minha prima Joaninha, corada
do passo e do vivo ar, com um vestido claro um pouco aberto no pescoço, que
fundia mais docemente, numa larga claridade, o esplendor branco da sua pele, e
o louro ondeado dos eus belos cabelos, - lindamente risonha, na surpresa que
alargava os seus largos, luminoso olhos negros, e trazendo ao colo uma
criancinha, gorda e cor-de-rosa, apenas coberta cima uma camisinha, de grandes
laços azuis.
E foi assim que Jacinto, nessa tarde de setembro, na Flor da Malva, viu
aquela com quem casou, em maio, na capelinha de azulejos, quando o grande pé de
roseira se cobrira já de rosas.
Cinco anos se
passaram em plena felicidade por ver correrem por aquelas terras duas fidalgas
crianças, Teresinha e Jacinto. Os caixotes embarcados de Paris enfim chegaram a
Tormes e serviam para demonstrar o total equilíbrio do protagonista,
aproveitando o que poderia ser aproveitado e desprezando as inutilidades da
civilização, justificando deste modo a observação feita por Grilo: Sua
Excelência brotara”. Certamente Jacinto descobrira seus melhores valores: era
feliz e fazia os outros felizes. Algumas vezes Jacinto falou em levar a esposa
para conhecer o 202 e a civilização, mas o projeto, por um motivo ou por outro,
era sempre adiado.
Quem voltou
a Paris foi Zé Fernandes e lá, sentindo-se abandonado e entediado, descobriu
uma porção de fantoches a viverem uma vida falsa e mesquinha. Percebeu que os
antigos conhecidos eram seres frágeis e vazios, idênticos entre si e massas
impessoais, amorfas, feitas para agradar ou desagradar os outros conforme seus
interesses. Não suportando a cidade, retornou a Portugal. Este serrano que
anteriormente valorizava os encantos da civilização foi tomado pelos mesmos
sentimentos de Jacinto e confirmou uma simples verdade: no fundo, reabilitou
Eça de Queirós com o seu Portugal.
Arrastei então por Paris dias de imenso tédio. Ao longo do Boulevard revi
nas vitrinas todo o luxo, que já me enfartava havia cinco anos, sem uma graça
nova, uma curta frescura de invenção. Nas livrarias, sem descobrir um livro,
folheava centenas de volumes amarelos, onde, de cada página que ao acaso abria,
se exalava um cheiro de morno de alcova, e de pó-de-arroz, de entre linhas trabalhadas
com efeminado arrebique, como rendas de camisas. Ao jantar, em qualquer
restaurante, encontrava, ornando e disfarçando as carnes ou as aves, o mesmo
molho, de cores e sabores de pomada, que já de manhã, noutro restaurante,
espelhado e dourejado, me enjoara no peixe e nos legumes. Paguei por grosso
preços garrafas do nosso rascante e rústico vinho de Torres, enobrecido com o
título de Chatêaou-isto, Château-aquilo, e pó postiço no gargalo. À noite, nos
teatros, encontrava a cama, a costumada cama, como centro e único fim da vida,
atraindo, mais fortemente que o monturo atrai as moscardos, todo um enxame de
gentes, estonteadas, frementes de erotismo, zumbindo pilhérias senis. Esta
sordidez da planície me levou a procurar melhor aragem de espírito nas alturas
da Colina, em Montmartre; - e aí, no meio de uma multidão elegante de senhoras,
de duquesas, de generais , de todo o lato pessoal da cidade, eu recebia, do
alto do placo, grossos jorros de obscenidades, que faziam estremecer de gozo as
orelhas cabeludas de gordos banqueiros, e arfar com delícia os corpetes de
Worms e de Doucet, sobre os peitos postiços das nobres damas. E recolhia
enjoado com, tanto relento de alcova, vagamente dispéptico com os molhos de
pomada do jantar, e sobretudo descontente comigo, por me não divertir, não
compreender a cidade, e errar através dela e da sua civilização superior, com
reserva ridícula de um censor, de um Catão austero. “Oh senhores!”, pensava eu
“pois não me divertirei nesta deliciosa cidade?” Entrara comigo no bolor da
velhice?
2. (FUVEST) O
romance A Cidade e as Serras, de Eça de Queirós, publicado em 1901, é
desenvolvimento de um conto chamado “Civilização”. Do romance como um todo pode
afirmar-se que
A) apresenta um narrador que se recorda de uma viagem que fizera havia algum tempo ao Oriente Médio, à Terra Santa, de onde deveria trazer uma relíquia para uma tia velha, beata e rica.
B) caracteriza uma narrativa em que se analisam os mecanismos do casamento e o comportamento da pequena burguesia da cidade de Lisboa.
C) apresenta uma personagem que detesta inicialmente a vida do campo,
aderindo ao desenvolvimento tecnológico da cidade, mas que ao final regressa à
vida campesina e a transforma com a aplicação de seus conhecimentos técnicos e
científicos.
D) revela narrativa cujo enredo envolve a vida devota da província e o celibato clerical e caracteriza a situação de decadência e alienação de Leiria, tomando-a como espelho da marginalização de todo o país com relação ao contexto europeu.
E) se desenvolve em duas linhas de ação: uma marcada por amores incestuosos; outra voltada paraa análise da vida da alta burguesia lisboeta.
D) revela narrativa cujo enredo envolve a vida devota da província e o celibato clerical e caracteriza a situação de decadência e alienação de Leiria, tomando-a como espelho da marginalização de todo o país com relação ao contexto europeu.
E) se desenvolve em duas linhas de ação: uma marcada por amores incestuosos; outra voltada paraa análise da vida da alta burguesia lisboeta.
- (FUVEST)
Já
a tarde caía quando recolhemos muito lentamente. E toda essa adorável paz do
céu, realmente celestial, e dos campos, onde cada folhinha conservava uma
quietação contemplativa, na luz docemente desmaiada, pousando sobre as coisas
com um liso e leve afago, penetrava tão profundamente Jacinto, que eu o senti,
no silêncio em que caíramos, suspirar de puro alívio.
Depois, muito gravemente:
Tu dizes que na Natureza não há pensamento...
Outra vez! Olha que maçada! Eu...
Mas é por estar nela suprimido o pensamento que lhe está poupado o sofrimento! Nós, desgraçados, não podemos suprimir o pensamento, mas certamente o podemos disciplinar e impedir que ele se estonteie e se esfalfe, como na fornalha das cidades, ideando gozos que nunca se realizam, aspirando a certezas que nunca se atingem!... E é o que aconselham estas colinas e estas árvores à nossa alma, que vela e se agita que viva na paz de um sonho vago e nada apeteça, nada tema, contra nada se insurja, e deixe o mundo rolar, não esperando dele senão um rumor de harmonia, que a embale e lhe favoreça o dormir dentro da mão de Deus. Hem, não te parece, Zé Fernandes?
Talvez. Mas é necessário então viver num mosteiro, com o temperamento de S. Bruno, ou ter cento e quarenta contos de renda e o desplante de certos Jacintos...
Eça de Queirós, A cidade e as serras.
Considerado no contexto de A cidade e as serras, o diálogo presente no excerto revela que, nesse romance de Eça de Queirós, o elogio da natureza e da vida rural
a) indica que o escritor, em sua última fase, abandonara o Realismo em favor do Naturalismo, privilegiando, de certo modo, a observação da natureza em detrimento da crítica social.
b) demonstra que a consciência ecológica do escritor já era desenvolvida o bastante para fazê-lo rejeitar, ao longo de toda a narrativa, as intervenções humanas no meio natural.
c) guarda aspectos conservadores, predominantemente voltados para a estabilidade social, embora o escritor mantenha, em certa medida, a prática da ironia que o caracteriza.
d) serve de pretexto para que o escritor critique, sob certos aspectos, os efeitos da revolução industrial e da urbanização acelerada que se haviam processado em Portugal nos primeiros anos do Século XIX.
e) veicula uma sátira radical da religião, embora o escritor simule conservar, até certo ponto, a veneração pela Igreja Católica que manifestara em seus primeiros romances.
Depois, muito gravemente:
Tu dizes que na Natureza não há pensamento...
Outra vez! Olha que maçada! Eu...
Mas é por estar nela suprimido o pensamento que lhe está poupado o sofrimento! Nós, desgraçados, não podemos suprimir o pensamento, mas certamente o podemos disciplinar e impedir que ele se estonteie e se esfalfe, como na fornalha das cidades, ideando gozos que nunca se realizam, aspirando a certezas que nunca se atingem!... E é o que aconselham estas colinas e estas árvores à nossa alma, que vela e se agita que viva na paz de um sonho vago e nada apeteça, nada tema, contra nada se insurja, e deixe o mundo rolar, não esperando dele senão um rumor de harmonia, que a embale e lhe favoreça o dormir dentro da mão de Deus. Hem, não te parece, Zé Fernandes?
Talvez. Mas é necessário então viver num mosteiro, com o temperamento de S. Bruno, ou ter cento e quarenta contos de renda e o desplante de certos Jacintos...
Eça de Queirós, A cidade e as serras.
Considerado no contexto de A cidade e as serras, o diálogo presente no excerto revela que, nesse romance de Eça de Queirós, o elogio da natureza e da vida rural
a) indica que o escritor, em sua última fase, abandonara o Realismo em favor do Naturalismo, privilegiando, de certo modo, a observação da natureza em detrimento da crítica social.
b) demonstra que a consciência ecológica do escritor já era desenvolvida o bastante para fazê-lo rejeitar, ao longo de toda a narrativa, as intervenções humanas no meio natural.
c) guarda aspectos conservadores, predominantemente voltados para a estabilidade social, embora o escritor mantenha, em certa medida, a prática da ironia que o caracteriza.
d) serve de pretexto para que o escritor critique, sob certos aspectos, os efeitos da revolução industrial e da urbanização acelerada que se haviam processado em Portugal nos primeiros anos do Século XIX.
e) veicula uma sátira radical da religião, embora o escritor simule conservar, até certo ponto, a veneração pela Igreja Católica que manifestara em seus primeiros romances.
1. (UNICENTRO) A
única passagem que NÃO encontra apoio em A Cidade e as Serras, de Eça de
Queirós, é
A)Em A Cidade
e as Serras, José Fernandes, de rica família proveniente de Guiães, região
serrana de Portugal, narra a história de Jacinto de Tormes, seu amigo também
fidalgo, embora nascido e criado em Paris.
B) A Cidade e as Serras explora uma grave tese sociológica: ser-nos preferível viver e proliferar pacificamente nas aldeias a naufragar no estéril tumulto das cidades.
C) Para Jacinto, Portugal estava associado à infelicidade, enquanto Paris associava-se à felicidade; ao longo do romance, contudo, essa opinião se modifica.
D) No romance dois ambientes distintos são enfocados ao longo das duas partes em que o livro pode ser dividido: a civilização e a natureza.
E) Já avançado em idade, Jacinto se aborrece com as serras e tenciona reviver as orgias parisienses, mas faltam-lhe, agora, saúde e riqueza.
A)
B) A Cidade e as Serras explora uma grave tese sociológica: ser-nos preferível viver e proliferar pacificamente nas aldeias a naufragar no estéril tumulto das cidades.
C) Para Jacinto, Portugal estava associado à infelicidade, enquanto Paris associava-se à felicidade; ao longo do romance, contudo, essa opinião se modifica.
D) No romance dois ambientes distintos são enfocados ao longo das duas partes em que o livro pode ser dividido: a civilização e a natureza.
E) Já avançado em idade, Jacinto se aborrece com as serras e tenciona reviver as orgias parisienses, mas faltam-lhe, agora, saúde e riqueza.
FUVEST
2012
Leia
o excerto de A cidade e as serras, de
Eça de Queirós, e responda ao que se pede.
Na
sala, a tia Vicência ainda nos esperava desconsolada, entre todas as luzes, que
ardiam no
silêncio
e paz do serão debandado:
_
Ora uma coisa assim! Nem querem ficar para tomar um copinho de geleia, um
cálice de
vinho
do Porto!
_
Esteve tudo muito desanimado, tia Vicência! _ exclamei desafogando o meu tédio.
_ Todo
esse
mulherio emudeceu, os amigos com um ar desconfiado...
Jacinto
protestou, muito divertido, muito sincero:
_
Não! Pelo contrário. Gostei imenso. Excelente gente! E tão simples... Todas
estas raparigas
me
pareceram ótimas. E tão frescas, tão alegres! Vou ter aqui bons amigos, quando
verificarem que
eu
não sou miguelista.
Então
contamos à tia Vicência a prodigiosa história de D. Miguel escondido em
Tormes... Ela
ria!
Que coisas! E mau seria...
_
Mas o Sr. Jacinto, não é?
_
Eu, minha senhora, sou socialista...
a)
Defina sucintamente o miguelismo a que
se refere o texto e indique a relação que há entre essa
corrente
política e a história do Brasil.
b)
Tendo em vista o contexto da obra, explique o que significa, para Jacinto, ser “socialista”.
GABARITO:
a) Miguelismo
é a tendência política absolutista, encarnada por Dom Miguel, irmão de Dom
Pedro I, do Brasil. Este, que era liberal, quando abdica do trono brasileiro,
volta pra Portugal e lá derrota aquele que representava o absolutismo.
b) Ser
socialista para Jacinto significa elevar a condição socioeconômica do camponês,
de modo assistencialista, mantendo-se os privilégios dos proprietários rurais. É
um socialismo paternalista, ao estilo “pai dos pobres”.
11. Os trechos a seguir foram extraídos de A cidade e
as serras, de Eça de Queirós. Mas
dentro, no peristilo, logo me surpreendeu um elevador instalado por Jacinto –
apesar do 202 ter somente dois andares, e ligados por uma escadaria tão doce
que nunca ofendera a asma da Srª. D. Angelina! Espaçoso, tapetado, ele
oferecia, para aquela jornada de sete segundos, confortos numerosos, um divã,
uma pele de urso, um roteiro das ruas de Paris, prateleiras gradeadas com
charutos e livros. Na antecâmera, onde desembarcamos, encontrei a temperatura
macia e tépida duma tarde de Maio, em Guiães. Um criado, mais atento ao
termômetro que um piloto à agulha, regulava destramente a boca dourada do
calorífero. E perfumadores entre palmeiras, como num terraço santo de
Benares, esparziam um vapor, aromatizando e salutarmente umedecendo aquele ar
delicado e superfino.
Eu murmurei, nas profundidades do meu
assombrado ser:
– Eis a Civilização!
|
– Meus amigos, há uma desgraça...
Dornan pulou na cadeira: – Fogo?
– Não, não era fogo. Fora o elevador dos
pratos que inesperadamente, ao subir o peixe de S. Alteza, se desarranjara, e
não se movia, encalhado!
(...)
O Grão-Duque lá estava, debruçado sobre
o poço escuro do elevador, onde mergulhara uma vela que lhe avermelhava mais
a face esbraseada. Espreitei, por sobre o seu ombro real. Em baixo, na treva,
sobre uma larga prancha, o peixe precioso alvejava, deitado na travessa,
ainda fumegando, entre rodelas de limão. Jacinto, branco como a gravata,
torturava desesperadamente a mola complicada do ascensor. Depois foi o
Grão-Duque que, com os pulsos cabeludos, atirou um empuxão tremendo aos cabos
em que ele rolava. Debalde! O aparelho enrijara numa inércia de bronze
eterno.
|
a)
Levando em consideração os dois trechos, explique qual é o significado do
enguiço do elevador.
b)
Como o desfecho do romance se relaciona com esse episódio?
GABARITO:
a) O
enguiço mostra a precariedade das crenças de Jacinto.
b) É
uma pista de que o desfecho da história caminhará para uma redenção de Jacinto
com relação às suas crenças. Sabe-se que ao final da história ele se reencontra
com “as serras”, abandonando sua crença extrema na civilização.
Ccce
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